Estamos em ano eleitoral. No caso, ano de eleições municipais. Eleitores, prefeitos e candidatos sempre se deparam com diversas dúvidas sobre as condutas permitidas e/ou proibitivas em ano de eleição. Há interferência direta da legislação eleitoral nas compras públicas no trimestre que antecede as eleições? Até quando é possível licitar e contratar nos anos pares em que ocorrem os pleitos onde o cidadão apto exerce seu voto? São indagações como estas que rotineiramente respondemos quando se avizinha a chamada festa da democracia brasileira e que serão esclarecidas neste artigo que mistura os apetitosos Direito Eleitoral e Direito Administrativo, este último com enfoque nas contratações públicas.
O Direito Eleitoral e a Gestão Pública: Uma Relação Inseparável
Mas esse trabalho é de Direito Eleitoral ou de Administrativo? Para que o gestor público exerça seu mandato e, como chefe do executivo, dê o comando para realização de políticas públicas, precisará antes se submeter a um processo de sufrágio universal com voto direto e secreto, ou seja, um processo eleitoral. E nesse processo entende-se ou subentende-se que o vencedor do pleito eleitoral tenha conhecimentos sobre gestão pública e técnicos a sua disposição que elevem seu conhecimento para práticas necessárias de contratações públicas no0 atendimento do interesse da sociedade municipal. A licitação ocorre na gestão que se inicia ordinariamente após um processo de eleição. Haverá um grande esforço ao longo deste artigo para não demonstrar predileção, nunca tentativa de superar o “em cima do murismo”, como se diz no Nordeste do Brasil, ou o “saboneteia”, como se diz no Rio Grande do Sul.
Licitações e Contratações em Período Eleitoral: Mitos e Realidades
Serão escritos inúmeros parágrafos para somente ao final dizer que não há no ordenamento jurídico brasileiro um dispositivo que taxativamente proíba a realização de licitações e contratações públicas no período eleitoral? Vai cravar que não há um marco temporal que impeça a feitura desses certames assim como tantas limitações existem para diminuir a disparidade inevitável de quem está no comando da máquina administrativa? Há uma gama de reflexões e informações além dessa que parece tão garapa4 mas que pode nos fazer render homenagens ao fantástico Paul Valéry ao nos ensinar que convicção é a palavra que permite pôr, com a consciência tranquila, o tom da força ao serviço da incerteza.
Muito se tem de gestores públicos que ao longo de seu mandato acabam cassados por abuso de poder político, uso da máquina administrativa em benefício de campanha eleitoral. E muito desse abuso político tem viés econômico, utilizando inclusive de contratos administrativos para desvirtuar a isonomia entre os postulantes. No Brasil há um conjunto de normas que buscam frear esse uso irresponsável de recursos públicos com o nada republicano intuito de privilegiar o grupo político que se encontra no poder.
Traz-se à baila uma legislação eleitoral de impactos diretos no Direito Administrativo, qual seja, o art. 73 da Lei das Eleições5 que nos mostra quais as “Condutas Vedadas aos Agentes Públicos em Campanhas Eleitorais”. Trata-se da norma eleitoral mais acurada em regras de condutas para quem está no exercício de mandato eletivo no ano das eleições e que nos convida a refletir sobre essa certeza cravada quanto a inexistência de impedimento para licitar e contratar no período eleitoral.
Nesse contexto, destacam-se dois grandes exemplos de repercussão de regras eleitorais nas licitações e contratações públicas. O primeiro a ser destacado é a vedação do parágrafo 10º do art. 43 da Lei nº. 9504/97 ao cravar que no ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa.
A Lei das Eleições e suas Implicações para as Contratações Públicas:
1) Vedação à Distribuição Gratuita de Bens e Benefícios:
Veja quanto de informação de licitações e contratações públicas extraímos desse dispositivo de norma eleitoral. Não se pode sequer licitar e contratar para distribuir como programa social aquilo que já não vinha sendo licitado e contratado minimamente no ano anterior. Ora, mas a lei não diz taxativamente que não pode licitar! Então justifique a razão pela qual se instaura um processo licitatório e se contrata algo que não se pode materializar em políticas públicas? Isso é no mínimo irresponsabilidade com dinheiro público e não faltarão princípios da administração pública afrontados com a inofensiva e desarrazoada contratação pública.
Perceba que antes de pensar na licitação, na contratação, a tarefa de casa será primeiro se existem programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior daquilo que se pretende adquirir e distribuir como política pública de desenvolvimento social. Repito: uma norma eleitoral com influência direta na gestão pública e principalmente nas contratações públicas.
Reforçando aqui o objetivo da norma apresentada: proibir e coibir contratações que sejam voltadas ao atendimento direto de interesses eleitorais.
A contratação em si é ilegal? Há quem defenda que não. Mas aos defensores indago: como justificar e motivar aquela contratação e como não ser ela a prova robusta do ilícito eleitoral diante de um abuso evidente do poder político com viés econômico? O direito não é ciência exata e sobrevive de respeitosas divergências no campo das ideias.
Estamos vivenciando, por exemplo, uma das maiores calamidades da história brasileira no Estado do Rio Grande do Sul. Calamidade, estado de emergência, necessidade de agir da administração pública em ano de eleição; a omissão não é uma opção. A política pública precisará chegar ao cidadão através da gestão municipal, mas não necessariamente o prefeito candidato a reeleição fará uso disso para promoção pessoal às custas do dinheiro público ou mesmo da condição de mandatário. A cesta básica deve chegar aos necessitados, mas não pelas mãos daquele que mais uma vez se submeterá ao processo eleitoral como candidato. Por isso o parágrafo 10º do art. 43 da Lei nº. 9504/97 inclusive excetua a condição de calamidade pública.
2) Restrições à Publicidade de Órgãos Públicos:
Uma outra vertente a ser destacada é o impedimento em norma eleitoral de empenhar, no primeiro semestre do ano de eleição, despesas com publicidade dos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, ou das respectivas entidades da administração indireta, que excedam a 6 (seis) vezes a média mensal dos valores empenhados e não cancelados nos 3 (três) últimos anos que antecedem o pleito, conforme preceitua o inciso VII do art. 73 da Lei das Eleições.
Há impedimento de licitar ou contratar publicidade no período eleitoral? Não. Mas é legal a contratação e o empenho daquele valor que já se sabe não ser possível contratar por vedação eleitoral? Isso é ilícito eleitoral e falta de planejamento administrativo. Aí vem o torcedor que fica atrás do banco de reservas xingando o treinador e grita: faz uma licitação e usa o sistema de registro de preços que você não tem obrigação de contratar!! Ainda bem que a zuada é grande e o mister não escuta tudo.
A licitação da publicidade em si não é proibida, tampouco a contratação. Mas perceba quantos princípios da administração pública podem ser desrespeitados quando se sabia dos impedimentos trazidos por uma norma eleitoral diante daquela média estabelecida. Em não havendo valores empenhados e não cancelados nos primeiros três anos de mandato, qual a justificativa plausível para instaurar um processo licitatório de contratação dessa publicidade se não será possível executar? Licitação custa muito para administração.
Reforçando aqui também o objetivo da norma apresentada: proibir e coibir contratações que sejam voltadas ao atendimento direto de interesses eleitorais, que publicizem feitos da Administração para locupletar interesses do candidato à reeleição, por exemplo.
A Lei de Responsabilidade Fiscal e o Impacto nas Contratações Públicas no Ano Eleitoral
Outro ponto a destacar: a Lei de Lei de Responsabilidade Fiscal6. A eleição ocorre no último ano do exercício do mandato e os impedimentos da Lei de Responsabilidade Fiscal, inclusive ao pensarmos em restos a pagar a serem deixados ao final da gestão, necessariamente impactam nas licitações e contratações públicas naquela derradeira anualidade.
A Lei Complementar nº 101/2000 é uma norma de caráter eleitoral? Não, mas tem impacto na legislação eleitoral bem como na finalização do mandato eletivo quando o art. 42 nos ensina que é vedado nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito.
Ora, se o gestor público no período que avizinha o processo eleitoral gasta exacerbadamente, sem a observância da legislação de responsabilidade fiscal, sem parcimônia e planejamento dos gastos públicos, para atingir claramente objetivos políticos, obviamente estaremos diante de um abuso de poder político com viés econômico, com efeitos econômicos e em seu desfavor ensejarão ações eleitorais. Olha que conexão lógica!
Não há como pensar em licitações e contratações públicas em ano eleitoral sem perder de vista que cada dispêndio realizado pode interferir direta ou indiretamente no processo de escolha daquele que comandará pelos próximos anos aquela máquina administrativa.
Novamente destacamos o objetivo da norma apresentada: proibir e coibir contratações que sejam voltadas ao atendimento direto de interesses eleitorais, que gastem para além do que adequadamente foi planejado.
O Calendário Eleitoral e o Impacto nas Licitações e Contratações
A Influência da Inauguração de Obras no Calendário Eleitoral:
Dias atrás um dileto colega chegou a afirmar que as licitações públicas municipais no presente ano irão cessar no final de maio ou início de junho pois o grande ganho político do mandatário é participar da inauguração da obra e isso só pode ocorrer até três meses antes do pleito. Quanta ingenuidade daquela alma boa que sequer imagina que pode se deparar com contratações de pavimentação asfáltica no mês de setembro e execução daquele contrato na véspera da eleição; não sabe ele que asfalto se auto inaugura!
Há quem afirme que as licitações públicas municipais no presente ano irão cessar no final de maio ou início de junho pois o grande ganho político do mandatário é participar da inauguração da obra e isso só pode ocorrer até três meses antes do pleito. Quanta ingenuidade destes que sequer imaginam que podem se deparar com contratações de pavimentação asfáltica no mês de setembro e execução daquele contrato na véspera da eleição; não sabem eles que asfalto se auto inaugura!
Planejamento e Boa Gestão em Ano Eleitoral: Essencial para o Interesse Público
Se adentramos especificamente no tema licitações e contratações públicas, podemos de imediato destacar que o processo de contratação pública vai muito além da “licitação ou da contratação direta” em si. A administração pública não pode parar em período eleitoral, em ano eleitoral. Não podemos esquecer que toda contratação deve, geralmente, originar de um planejamento anual de contratação, vinculado ao planejamento estratégico institucional e orçamentária. A boa prática da gestão pública exige isso dos gestores, inclusive dos gestores municipais. A adequação entre as necessidades “versus” as possibilidades (econômico-financeiras) é de ordem principiológica de toda e qualquer contratação pública. Percebe aqui que queremos a destacar para você leitor que a boa gestão pública, interessada e voltada ao efetivo atendimento do interesse pública, é desde logo protegida por todo e qualquer tipo de “crime eleitoral”.
Quanto planejamento de contratação deixa de se iniciar ou de finalizar por falta de informação adequada sobre a legislação eleitoral. Quanto deixa a administração pública de ter seus objetivos atingidos por falta de licitações sendo executadas em ano eleitoral? É tempo de mantermos a devida capacitação e entendimento sobre os temas que envolvem o direito eleitoral e o direito administrativo, notadamente sobre licitações e contratações.
Importante relembrar uma frase que tomamos conhecimento ser de Daniela Maurano: “O óbvio não existe. O que existe são análises bem ou mal feitas sobre conjunturas que temos ou não capacidade de avaliar.”
Conclusão
Portanto, concluímos que não há um dispositivo legal que proíba licitar e contratar em período eleitoral, mas é preciso tomar muito cuidado ao licitar ou contratar, pois uma regra eleitoral pode impactar diretamente na motivação e justificativa daquela ação administrativa. A reposta é, então, DEPENDE. Depende do que? Dos INTERESSES por trás da licitação ou contratação.