Introdução
Inicialmente, convém ressaltar que a Lei 14.133/2021, a Nova Lei de Licitações e Contratos administrativos (NLLC), menciona expressamente o relevante instituto da diligência em três oportunidades, nos arts. 42, § 2.º, 59, § 2.º, e 64, I e II.
Contudo, deve-se considerar que, mesmo não dispondo de forma expressa acerca do termo supra em outros artigos da Lei, ao se ler sanear erros, falhas ou irregularidades, leia-se diligência, independentemente do ato normativo (lei, decreto ou outros).
Ademais, para a verdadeira aplicabilidade do instituto, há que compreendê-lo com base em diversos princípios dispostos no art. 5.º da NLLC, visto que por meio desses alicerces é que os agentes públicos poderão fundamentar suas decisões, com segurança, a fim de atender aos interesses da coletividade.
Assim, o objetivo deste capítulo é conceituar e demonstrar a importância da diligência, que se trata de um dever-poder de os agentes públicos, diante de dúvidas, demandarem atos e providências necessários ao esclarecimento, complemento e saneamento eficiente do procedimento licitatório, em qualquer fase.
A Lei 14.133/2021 possibilita ainda a substituição e a juntada de documentos novos para complementar informação, desde que necessária para apurar fatos existentes à época da abertura do certame, diferentemente da Lei 8.666/1993, que veda expressamente. Entretanto, quanto a essa última legislação, observa-se que, com o passar do tempo, houve evolução da doutrina e jurisprudência no entendimento.
Trata-se de um instrumento para o agente de contratação, pregoeiro, comissão de contratação e autoridade competente e outros agentes, aplicável em todas as modalidades licitatórias da NLLC, consubstanciado em diversos princípios, notadamente o da eficiência e do interesse público. O instituto da diligência na Administração Pública busca ainda postura positiva, no sentido de zelo com a coisa pública, bem como constante interesse pelo aprendizado e atualizações necessárias para fiel aplicabilidade da Lei.
Entendendo a diligência no contexto doutrinário, jurisprudencial e sua aplicação legal de modo amplo
Pois bem, é interessante destacar de início o atual modelo de Administração Pública, qual seja, o gerencial, pautada pelos resultados que busca inovar, deixando de ter olhos fixos em procedimentos, com base na legalidade estrita, hierarquia e com rigor de formalidades para ampliar a eficiência, a fim de dar maior autonomia aos entes (órgãos e entidades) na busca de soluções mais céleres e eficazes.
Assim sendo, entender o conceito de diligência e sua aplicabilidade é fundamental, e, segundo Ronny Charles Lopes de Torres, “nos casos em que o agente de contratação, pregoeiro ou comissão possua dúvidas […], devem ser realizadas as diligências necessárias para os devidos esclarecimentos”.
Para Victor Aguiar Jardim de Amorim, “havendo alguma falha formal, omissão ou obscuridade nos documentos de habilitação e/ou na proposta há um poder-dever […] de realizar a diligência, superando-se o dogma do formalismo excessivo e prestigiando a razoabilidade e a busca da eficiência […]”.
Nota-se que a diligência é um dever-poder do agente de contratação, pregoeiro e outros agentes, caso haja dúvidas, ou ainda quando requerido pelos licitantes interessados.
Nesse sentido, Ronny Charles Lopes de Torres diz que é “importante frisar que as diligências podem ser realizadas de ofício ou a pedido do licitante interessado. Sendo a pedido, deverá o requerente indicar as provas ou os indícios que fundamentam a suspeita”.
Segundo Marçal Justen Filho, “[…] sobre o direito do particular à diligência, o laconismo da disciplina legal quanto à sua realização, não implica existir autonomia Administrativa para determinar sua ocorrência, por conveniência e oportunidade. A diligência é um dever da Administrativa, sobretudo é direito do particular”.
Em casos de impugnações ou pedidos de esclarecimentos, por exemplo, solicitados pelos licitantes concorrentes, estamos diante de clássicos casos de diligências, a fim de aclarar possíveis omissões, na descrição de um dado produto ou de uma cláusula do edital.
Marçal Justen Filho argumenta que “[…] toda e qualquer diligência deverá ser instaurada formalmente, justamente por isso, a denegação da realização de diligência deverá ser motivada”.
Portanto, quando ocorrer a negativa para a realização, essa decisão deverá ser sempre motivada e satisfatória. Dessarte, a possibilidade de promoção de diligências, conforme supramencionado, está presente na Lei 14.133/2021 em vários artigos, de forma expressa, e em outros momentos esta dispõe implicitamente, fazendo com que o intérprete busque entendê-la de maneira sistemática; é o que ocorre em vários comandos da Lei, por exemplo, no art. 12, III, ao dispor que desatendimento de exigências meramente formais não importará o afastamento do licitante ou a invalidação do processo.
Vale frisar que o instituto da diligência é evidenciado na lei em comento em três grandes oportunidades: primeira, no art. 42, § 2.º; segunda, no art. 59, § 2.º; e terceira, no art. 64, I e II.
É cediço que a Lei 14.133/2021, como bem menciona Rafael Carvalho Rezende Oliveira, trata-se de um “museu de grandes novidades”, tendo em vista que sua evolução ocorreu a partir das boas práticas sedimentadas em leis esparsas, na doutrina e jurisprudências dos Tribunais Superiores e Cortes de Contas.
Nessa senda, para se ter uma ideia, observem a exequibilidade das propostas, uma vez que há clara semelhança entre o art. 48, § 1.º, II, da Lei 8.666/1993 e o art. 59, § 2.º, da NLLC.
Nesses casos, a promoção de diligência se impõe para aferir a exequibilidade das propostas, haja vista a presunção relativa de inexequibilidade de preços, conforme entendimento há muito tempo encartado na Súmula 262 do TCU.
Quanto à inexequibilidade, Ronny Charles Lopes de Torres cita em sua obra um rol exemplificativo de formas de diligências em situação de aparente inexequibilidade, a fim de sanar dúvidas, resumidamente:
- Questionamento à proponente para apresentação de justificativas e comprovações;
- Solicitação de cópia de contrato, para validação de atestados;
- Consulta a entidades ou conselhos de classe, sindicatos ou similares;
- Verificação de notas fiscais.
Com efeito, oportuno destacar didaticamente, também quanto ao momento de habilitação, a diferença existente entre o art. 43, § 3.º, da Lei 8.666/1993 e o caput do art. 64 da NLLC, uma vez que o último possibilita substituição e apresentação de novos documentos de habilitação expressamente desde que necessário nos termos da lei. Entretanto, o entendimento do Tribunal de Contas sobre a juntada de documentos em alguns casos sob a égide da Lei 8.666/1993 avançou com o passar dos anos.
Conforme já mencionado, a Lei 14.133/2021 é uma grande evolução a partir das boas práticas sedimentadas em leis esparsas, na doutrina e jurisprudências dos Tribunais Superiores e Cortes de Contas, e não é por acaso que a redação do art. 64 da NLLC positiva a compreensão de instrumentalidade da licitação, no sentido de reconhecer que o procedimento licitatório não deve ser pautado por um formalismo exacerbado que desvirtue sua finalidade, na qual interessa apenas o cumprimento das etapas definidas no edital.
Vale frisar que, para promover a diligência, não é preciso que tal possibilidade esteja expressamente prevista no edital. A realização de diligência e seu fundamento jurídico decorrem diretamente da letra da lei.
Assim, o fato de o edital não ter previsto ou regulado a diligência, bem como as condições a serem observadas para sua realização, não é razão suficiente para impedir o agente público de executá-la.
Importante assinalar que a diligência deve ser antecedida de comunicação a todos os interessados, para que estes possam acompanhá-la, em obediência ao princípio da publicidade, ao devido processo legal e ao contraditório aos quais a diligência está submetida, ou seja, o instituto da diligência não deve ser uma surpresa para os interessados.
Aliás, nesse sentido argumenta Marçal Justen Filho, “que é antijurídico que a diligência seja realizada em segredo pelo pregoeiro, sem o acompanhamento de qualquer outra autoridade administrativa ou dos demais interessados”.
Com esse espírito, é bom frisar didaticamente, por exemplo, que o Decreto 10.024/2019 versa que, na oportunidade de realização de diligências, a sessão pública somente poderá ser reiniciada mediante aviso prévio no sistema com, no mínimo, vinte e quatro horas de antecedência, e a ocorrência será registrada em ata.
Diante dos argumentos apresentados inicialmente, cumpre fazer algumas indagações e respondê-las para uma melhor compreensão
- Diligenciar é uma opção?
Conforme já mencionado, a promoção de diligências não se trata de mera faculdade (opção) da Administração, mas de um dever-poder.
Para Joel de Menezes Niebuhr, “a realização de diligência é ato discricionário, pelo fato de não haver na legislação a obrigação de diligência para todos os casos, no entanto, isso não significa que a administração decida de forma arbitrária se irá realizá-la ou não”.
Extrai-se que, havendo dúvidas, é dever-poder realizá-la, a fim de atender aos interesses da coletividade, razão primordial de ser da máquina pública.
Aduz com grande sabedoria Marçal Justen Filho que “a ausência de diligência só ocorrerá em duas situações: inexistência de dúvidas ou controvérsia sobre a documentação […] e a impossibilidade de saneamento de defeito por meio da diligência”.
Portanto, percebe-se a obrigatoriedade de executá-la em caso de dúvidas, sendo um direito assegurado quando solicitado pelo licitante interessado e, caso ocorra a negativa de realização, essa decisão deverá ser motivada e satisfatória.
Nesse sentido, caso haja negativa de realização da diligência, acreditamos que caberá pedido de reconsideração no prazo de três dias úteis nos termos do inciso II do art. 165 da Lei 14.133/2021, apesar de o artigo não dispor a respeito, pois todos os direitos devem ser salvaguardados no transcorrer dos procedimentos em consideração à transparência e à moralidade.
- É possível diligência in loco?
Para a realização de diligências in loco, deverá ser dada ciência aos interessados acerca de sua execução, para que haja a devida publicidade do feito e que os interessados possam acompanhá-la.
Sobre o tema diligências in loco, argumenta Marçal Justen Filho que “A expressão ‘diligência’ abrange providências de diversa natureza. A Comissão de Licitação ou Autoridade Superior poderá/deverá promover vistorias, para comprovar in loco o estado das instalações, maquinários etc. […]”.
Não obstante tal possibilidade, é indispensável registrar que os agentes públicos responsáveis devem agir com muita ponderação, de modo a respeitar, de um lado, os direitos dos licitantes e, de outro, evitar atos desnecessários ou dispensáveis, pois a inspeção é medida excepcional e deve ser adotada apenas em situações peculiares e bem especiais.
- Qual a extensão/momento da promoção da diligência?
Sua extensão é tão abrangente que a Administração nos procedimentos deverá adotá-la sempre que necessário, com a finalidade de elucidar questões surgidas na:
a) fase interna de forma cautelar – quando os agentes responsáveis perceberem impropriedades no planejamento, por exemplo;
b) fase externa – nos pedidos de esclarecimentos de dúvidas e impugnação, no julgamento das propostas, na apreciação dos documentos de habilitação e até mesmo antes da homologação de forma cautelar e para atender ao princípio da autotutela;
c) fase de execução do contrato – no curso do contrato, por exemplo, arts. 147 e 171, ambos da NLLC –, quando se trata da invalidação (última opção “[…] que apenas pode ser utilizada quando esvaziarem todas as possibilidades de saneamentos, modulação dos efeitos, considerando, notadamente, o consequencialismo decisório de uma eventual invalidação e o interesse público em jogo)”.
Vale ressaltar, por exemplo, no caso de impugnação intempestiva ao edital, ainda que o agente responsável pela condução do certame não a receba pela perda do prazo, há o dever de considerar os argumentos trazidos.
- É possível a realização de diligências no âmbito da fase recursal?
Ensina-nos Victor Aguiar Jardim de Amorim: “[…] se os atos finais do certame (adjudicação e homologação) constituem o marco […] limite para a realização de diligências, não se vislumbra qualquer óbice tais providências pela Administração em sede de recursos”.
Nessa linha, é o que extraímos do esculpido no art. 71 da NLLC, pois não se vislumbra também qualquer óbice para a realização de diligência em sede recursal, caso necessário para melhor compreensão dos fatos e observância de um juízo de verdade real.
Diligenciar é, sobretudo, adotar as providências mais adequadas e satisfatórias para a realização das finalidades pretendidas. Assim sendo, caso ocorram irregularidades insanáveis, ou seja, eivadas de vícios que as tornam ilegais e, consequentemente, que tragam prejuízos para coletividade (interesse primário), deverão ser tomadas todas as medidas jurídicas possíveis. Não são por acaso os enunciados das Súmulas 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal.
Trata-se de aplicação do princípio da autotutela, em prol do princípio do interesse público primário, que, como aduz o professor Ronny Charles, ainda resguarda primazia em relação aos interesses individuais; portanto, caso ocorram vícios insanáveis que afetem o interesse da coletividade, estes deverão ser anulados.
Ainda nesse quadrante, Anderson Sant’Ana Pedra defende que “o saneamento deve ser a tônica nos procedimentos trazidos pela NLLC, obviamente sem se afastar dos princípios esculpidos no artigo 5.º destacando: legalidade, segurança jurídica, interesse público e motivação”.
Por essa razão, a extensão do momento da diligência é ampla e ultrapassa a chamada fase de controle disposta no art. 169, § 3.º, I, para aferir melhor a gestão de riscos.
O instituto está presente na fase de execução dos contratos nos termos dos arts. 147, caput, e 171, § 3.º, que buscarão o saneamento dos vícios antes de qualquer outra medida mais extrema que possa causar danos aos interesses da coletividade.
Ainda, para compreender o limite de diligenciar, notadamente é preciso compreender e harmonizar alguns princípios com o procedimento formal, isto é, afastamento de exigências demasiadas e rigorismos excessivos que comprometam a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração.
É evidente que a análise formal tem sua importância como meio de prestigiar a segurança e a previsibilidade das decisões, evitando desvios do julgador que possam comprometer a lisura do procedimento.
Contudo, isso não significa que a Administração deva ser formalista a ponto de fazer exigências desarrazoadas ou também deva anular o processo ou o julgamento, ou inabilitar licitantes, diante de simples omissões ou irregularidades na documentação ou na proposta, quando tais omissões sejam irrelevantes ou não causem prejuízos à Administração ou para interessados no certame.
Entretanto, há que entender também que, mesmo diante do princípio do formalismo moderado, isso não significa relativizar a qualquer custo todo o procedimento licitatório, ou seja, não é completa ausência de formalismo, até mesmo porque a essência do procedimento formal é afastar fornecedores com intenções duvidosas.
Deve haver ponderação e razoabilidade a fim de lançar mão de uma boa interpretação para flexibilizar as normas, considerando alguns cuidados indispensáveis quando de sua promoção.
O primeiro deles é documentá-las por escrito, sendo prudente lavrar tudo em ata circunstanciada, fazendo-se assinar por todos os interessados. E, mais, sempre que a diligência ocorrer, conforme já mencionado, deverá ser prévia e obrigatoriamente comunicada a todos os licitantes, indicando-se dia, hora e local de sua realização, em homenagem aos princípios da igualdade, da transparência e demais correlatos.
Ressalte-se que os agentes públicos responsáveis pela condução das licitações poderão diligenciar/recorrer ao auxílio do assessoramento jurídico, do controle interno, bem como técnicos, especialmente quando forem investigar a autenticidade de documentos considerados suspeitos, por exemplo, atestados de capacidade técnica. Não por acaso a NLLC dispõe a respeito no art. 8.º, §§ 3.º e 4.º.
Acerca do formalismo moderado, não há como falar sem pensar na eficiência, na economicidade e na aquisição de propostas mais vantajosas para administração, visto que existe uma ligação umbilical entre todos.
Argumenta Lucas Rocha Furtado que “a ideia de formalismo moderado busca superar o dogma da necessidade de interpretação rigorosa e literal de preceitos legais que pode implicar um formalismo exagerado e inútil, prejudicando o andamento dos certames”.
Não diferente entende o Supremo Tribunal Federal, isto é, se a irregularidade que não atendeu a formalidade prevista no edital licitatório não lhe trouxe vantagem nem implicou prejuízos para os demais participantes, correta é a adjudicação.
Tipos de erros (formais x materiais x substanciais)
As diligências têm por escopo, portanto, o esclarecimento de dúvidas, a obtenção de informações complementares e o saneamento de falhas (vícios ou erros).
Quanto ao propósito de saneamento de falhas, para se avaliar a plausibilidade de adoção de diligência, é preciso identificar a natureza do vício (ou erro) ou da omissão, se “formal”, “material” ou “substancial”.
Assim sendo, para melhor compreensão, trazemos quadro extraído da obra do professor Victor Aguiar Jardim de Amorim:
Para fomentar o debate no presente artigo, é salutar trazermos ao conhecimento posições antagônicas de dois exímios doutrinadores quanto à questão de erro substancial.
Ao comentar o art. 59, I, da Lei 14.133/2021, Joel de Menezes Niebuhr diz que “[…] propostas que apresentem defeitos quaisquer que sejam eles, ainda que produzam efeitos substanciais e que não sejam meramente formais, […], não devem ser desclassificadas de pronto, deve-se permitir que os autores delas corrijam os supostos defeitos”.
Ao comentar o mesmo art. 59, em sua obra, Ronny Charles Lopes de Torres aduz: “[…] Assim, entendemos que a melhor orientação jurídica a ser dada é para que seja exercida a prerrogativa administrativa de sanar erros ou falhas que não alterem a substância das propostas, […]”.
Na mesma linha do professor Ronny Charles, o Tribunal de Contas da União entende possível o saneamento de erros ou falhas somente se não alterarem a substância das propostas.
É relevante trazer ao conhecimento dos leitores posições antagônicas encontradas na doutrina para o enriquecimento cultural.
Da juntada de documentos novos e sua extensão
A rigor, o que se quer saber é até onde devemos moderar o formalismo, com base na ideia de que a licitação é um meio, e não um fim em si mesmo. A evolução da hermenêutica jurídica é complexa, principalmente para os agentes responsáveis pela condução das licitações no momento da tomada de decisões.
Extraímos da leitura do art. 43, § 3.º, da Lei 8.666/1993, por exemplo, que é vedada a inclusão posterior de documento ou informações que deveriam constar originariamente da proposta.
Logo, em hipótese alguma, “independentemente do caso concreto”, não seria possível a realização de diligência pelos agentes públicos, que implique a necessária juntada de documento que não constava originalmente, isto é, o dispositivo legal deve ser interpretado em sua literalidade? Observamos que diante da evolução jurisprudencial e doutrinária a resposta é negativa, e nesse prumo Victor Aguiar Jardim de Amorim menciona que “não será permitida apenas a juntada de documento que comprove a existência de uma situação ou de um fato cuja conclusão ou consumação se deu após a realização da sessão de licitação […]”.
Com efeito, o art. 64 da Lei 14.133/2021 destaca a possibilidade de que em sede de diligência novos documentos podem ser juntados para complementação de informações acerca dos documentos já apresentados pelos licitantes e desde que necessária para apurar fatos existentes à época da abertura do certame.
Assim, caso a diligência realizada pelo agente de contratação, pregoeiro ou comissão de contratação resulte na produção ou encaminhamento de um documento que materialize uma situação já existente ao tempo da abertura da licitação, será plenamente admissível sua juntada em momento processual posterior ao indicado para a apresentação dos documentos de habilitação. De outro modo, não crível é a juntada de documento que comprove a existência de uma situação/fato cuja conclusão ou consumação ocorreu de forma superveniente à data de abertura da licitação.
Pois bem, recente julgado da Corte de Contas parece inclinar no entendimento de que o procedimento licitatório possui caráter instrumental (licitação como meio, e não como um fim em si mesmo), ou seja, licitação não é um culto religioso, o qual deva seguir respeitosa e rigorosamente, a qualquer custo, toda a sua liturgia.
Recentemente, o Tribunal de Contas da União, no Acórdão 1.211/2021 – Plenário, a par do que dispõe o art. 64 da Lei 14.133/2021, entendeu que a vedação da juntada de documentos não alcança documento ausente, comprobatório de condição atendida pelo licitante quando apresentou sua proposta.
Todavia, há posições divergentes quanto ao teor do referido acórdão, como a de Victor Aguiar Jardim de Amorim: “Não se desconhece serem os agentes de contratação os principais afetados com o suposto dilema posto entre ‘seguir o edital’ e ‘privilegiar a proposta mais vantajosa’, como se fossem aspectos antagônicos. Não o são!”.
Com o mesmo entendimento, Luciano Elias Reis: “[…] a juntada de um documento novo, ainda que seja para evidenciar um fato existente e eficaz, pode significar uma surpresa aos demais licitantes e uma violação à objetividade das regras editalícias”.
Quanto aos debates doutrinários, é salutar o conhecimento do posicionamento de ilustres professores, pois de certo modo acabam por trazer luz quando da tomada de decisões.
Conclusões
A Lei 14.133/2021 destaca o instituto da diligência literalmente em três oportunidades, nos arts. 42, § 2.º, 59, § 2.º, e 64, I e II.
Todavia, vale ressaltar que, mesmo não dispondo de forma expressa sobre a diligência em outros artigos da Lei, devemos considerar a possibilidade quando houver a necessidade de sanear erros, falhas ou irregularidades, haja vista que em linhas gerais diligência é um recurso indispensável, uma vez que é um dever-poder do agente de contratação, pregoeiro ou comissão de contratação, caso haja dúvidas, ou ainda, quando requerida pelos licitantes interessados, sempre em prol dos interesses públicos (primários).
Frisa-se que o saneamento deve ser a tônica nos procedimentos da NLLC, por isso devemos compreender o instituto da diligência a partir de diversos princípios dispostos no art. 5.º da Lei, notadamente os princípios da legalidade, da eficiência, do interesse público, do planejamento, da eficácia, da motivação, da vinculação ao edital, do julgamento objetivo, da segurança jurídica, da razoabilidade, da proporcionalidade, da economicidade e sempre somada aos princípios implícitos, por exemplo, os do formalismo moderado e da verdade real, uma vez que são verdadeiros alicerces, nos quais os agentes públicos fundamentarão suas decisões com segurança, a fim de atingir inúmeros objetivos elencados no art. 11 da Lei, notadamente assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para Administração, que consequentemente resultará no bem comum de toda a coletividade.
A diligência não se trata de mera faculdade ou direito da administração, mas de verdadeiro dever-poder, posto que não exista discricionariedade para decidir fazê-la ou não, quando esta se mostrar necessária diante de dúvidas para sanear erros, falhas ou irregularidades, sob pena de descartar uma boa proposta e, consequentemente, acarretar prejuízo econômico para a Administração e coletividade.
Há que ressaltar, por fim, que a NLLC possibilita a juntada de novos documentos em sede de diligência para apurar fatos existentes à época da abertura do certame para poder sanar erros ou falhas que não alterem a substância dos documentos e sua validade jurídica. Por outro lado, o TCU, em recente acórdão, entende que a vedação da juntada de documentos não alcança documento ausente, comprobatório de condição atendida pelo licitante quando apresentou sua proposta. No entanto, no meio desse dilema encontram-se os agentes públicos responsáveis pela condução dos procedimentos que em muitos casos não sabem se atendem ao princípio da vinculação ao instrumento, segurança jurídica e isonomia entre todos os partícipes ou se vão privilegiar a economicidade com a consequente aquisição pela proposta mais vantajosa.
Pois bem, resta-nos claro que, ad cautelam tantum, como salvaguarda, é prudente que os agentes responsáveis, em caso de dúvidas, solicitem apoio aos órgãos de assessoramento jurídico e de controle interno para o desempenho de suas funções na forma do art. 8.º, § 3.º, da NLLC. Ademais, os agentes de licitação fazem parte da primeira linha de defesa, portanto necessitam praticar atos contínuos e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo, na forma do art. 169 da NLLC.
Por fim, em casos extremos de impossibilidade de saneamento de vícios ocorridos no processo licitatório ou execução do contrato, deverá o gestor diligente observar com cautela as consequências de sua decisão, logo deverá buscar sempre o que for melhor para Administração e, sobretudo, para a sociedade.
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