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A “Sobra” Perigosa: Por Que a Devolução de Recursos Legislativos Ameaça a Constituição Federal

Keivison Estephanelle
18 de novembro de 2025

Sumário do Artigo

Devolução de Duodécimo e a Autonomia do Legislativo Municipal

A gestão dos recursos públicos no âmbito municipal é regida por estritos preceitos constitucionais e legais. O Poder Legislativo Municipal (Câmara de Vereadores), embora autônomo, depende do repasse de recursos do Poder Executivo (Prefeitura) para seu custeio, conforme o estabelecido no artigo 168 da Constituição Federal de 1988. Esse repasse é feito, via de regra, em parcelas mensais, conhecidas como duodécimos.

A devolução de sobras financeiras ao Executivo é um procedimento legal e esperado, consistindo na restituição de valores não utilizados ao final do exercício financeiro. No entanto, a prática da devolução em montantes excessivos e sucessivos tem se tornado um foco de atenção e um grave alerta para os Presidentes de Câmaras Municipais, sendo vista pelos órgãos de controle como um indicativo de falha grave na gestão e planejamento orçamentário.

O objetivo deste artigo é alertar sobre as implicações jurídicas e as sanções que recaem sobre os gestores que incorrem nessa prática, com base em recentes posicionamentos de tribunais de contas e do Ministério Público.

O duodécimo representa o limite de gastos do Legislativo, calculado com base nas receitas do município e nos limites percentuais estabelecidos pelo artigo 29-A da Constituição Federal. Receber e gerir esses recursos exige um rigoroso planejamento e execução orçamentária, que deve refletir a real necessidade e capacidade de despesa da Casa Legislativa.

A Falha na Previsão e o Princípio da Eficiência

A devolução excessiva de duodécimos, especialmente quando reincidente, sinaliza que a previsão orçamentária inicial do Legislativo foi superestimada. Isso configura uma inobservância a princípios basilares da Administração Pública, consagrados no artigo 37 da Constituição Federal, sobretudo o Princípio da Eficiência e o da Moralidade.

Como bem observa a doutrina, o princípio da eficiência é o alicerce da boa gestão. O renomado administrativista Hely Lopes de Meireles destaca definindo-o como:

O que se impõe a todo agente público de realizar suas ações com presteza, perfeição e rendimento funcional. É o mais moderno princípio da função administrativa, que já não se contenta em ser desempenhada apenas com legalidade, exigindo resultados positivos para o serviço público e satisfatório atendimento das necessidades da comunidade e de seus membros.
(MEIRELLES, 2013, p. 102)

Na visão de José dos Santos Carvalho Filho, a promulgação da Emenda Constitucional nº 19/1998, que elevou ao patamar constitucional os pilares da Reforma do Estado, refletiu a intenção do governo de instituir uma gestão pública de excelência. Essa mudança buscou, primordialmente, assegurar direitos concretos aos cidadãos:

O núcleo do princípio [da eficiência] é a procura de produtividade e economicidade, o que é mais importante, a exigência de reduzir os desperdícios de dinheiro público, o que impõe a execução dos serviços públicos com presteza, perfeição e rendimento funcional.
(CARVALHO FILHO, 2008, p. 25)

Sob o prisma da LRF, o planejamento orçamentário deixa de ser um mero ato formal para se tornar um instrumento de governança.

A boa gestão pública é aquela que consegue não apenas cumprir a lei, mas demonstrar a eficiência (rapidez e qualidade) na aplicação dos recursos. Não distante das obrigações do Poder Executivo com o orçamento público, o Presidente da Câmara tem que atuar com eficiência e planejamento com o duodécimo, para boa aplicação e não burlar a lei em excessivas devoluções ao longo do ano ou no final do exercício financeiro.

A Interpretação dos Órgãos de Controle: O Alerta do MPC-SP

O entendimento dos órgãos de controle, como o Ministério Público de Contas (MPC), consolida a tese de que a superestimativa orçamentária é uma falha de gestão.

Em novembro de 2023, o Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo (MPC-SP), por meio do Ato nº 17/2023-CP, publicou 25 ‘Orientações Interpretativas’ para as Contas de Câmaras Municipais, trazendo um alerta
inequívoco sobre o tema.

A Orientação Interpretativa (OI) nº 02.25, sobre Planejamento e Execução Orçamentário, define que:

“Concorre para a irregularidade das contas anuais da Câmara Municipal a ocorrência de superestimativa orçamentária, evidenciada pela excessiva devolução de duodécimos ao Poder Executivo ao final do exercício, prática que acarreta indesejado represamento de recursos públicos, configurando inobservância ao artigo 30 da Lei nº 4.320/1964 e ao artigo 12, caput, da Lei Complementar nº 101/2000, sendo causa suficiente para a irregularidade das contas se subverter os cálculos do limite de 70% com folha de pagamento, previsto no artigo 29-A, § 1º, da Constituição Federal.”

Dito isso, com efeito, o Presidente da Câmara poderá cometer crime de responsabilidade fiscal caso as devoluções orçamentárias realizadas resultem na superação do limite legal de 70% da despesa total com pessoal, conforme dispõe o Art. 29-A, § 3º da Constituição Federal.

O Risco de Irregularidade e o Exemplo Prático

A prática sucessiva de grandes devoluções tem sido considerada, isoladamente, como causa suficiente para o julgamento pela irregularidade das contas do Presidente da Câmara.

Um exemplo prático e recente é o caso da Câmara Municipal de Mairinque (SP), onde o Procurador de Contas, Dr. Celso Augusto Matuck Feres Jr., emitiu parecer pela irregularidade das contas anuais de 2023. A Câmara havia devolvido 21,57% dos duodécimos (R$ 1.769.505,59 de R$ 7.725.000,00 recebidos) de maneira reincidente.

O Procurador alertou que:

“A previsão de receitas acima da real necessidade de recursos para consecução da atividade legislativa denota falhas de planejamento, e inobservância a princípios e prescrições legais basilares da boa gestão pública. O cenário se agrava diante da restituição de valores aos cofres municipais apenas ao final da competência, o que inviabiliza à Chefia do Executivo o redirecionamento de verbas para fazer frente a eventuais demandas locais supervenientes.”

O grande ponto de alerta é que, conforme o MPC-SP, a devolução excessiva e sucessiva:

  • Afronta o princípio da eficiência e moralidade.
  • Confirma a falta de planejamento da Casa Legislativa.
  • Pode ser utilizada para subverter o cálculo do limite de 70% com folha de pagamento previsto no artigo 29-A, § 1º, da CF/88, o que é uma infração gravíssima.

Não muito distante, o Ministério Público de Contas do Estado do Paraná, também recebeu denúncias sobre a devolução excessiva do duodécimo, em seu processo 708269/18, por motivos de devoluções mensais:

“O MPC-PR, ainda por meio de seu Parecer de n° 472/20, pontuou que tais fatos são passíveis de serem analisados no âmbito da Prestação de Contas Anual, uma vez que essas devoluções antecipadas podem indicar uma deficiência na elaboração orçamentária municipal, podendo até mesmo ter como objetivo driblar os índices de despesas com pessoal, especialmente ao se considerar uma possível superestimação do orçamento do Legislativo”

O que percebe-se, é que os órgãos de controle estão atentos quanto às devoluções do duodécimo, pois pode resultar em drible à Lei de Responsabilidade Fiscal e falta de planejamento com o Orçamento Municipal, sendo que o Poder Executivo repassa valores acima do necessário, podendo atrapalhar os investimento no Município por parte do Poder Executivo.

Tentativa de burlar a Lei de Responsabilidade Fiscal

A Câmara Municipal inicia o exercício financeiro com o valor do duodécimo já previsto para todo o exercício, com isso, a Câmara possui o recurso duodecimal para ter a base de cálculo dos 70% para gasto com pessoal, incluindo os gastos com pensionistas e inativos, conforme prevê o Art. 29-A da Constituição Federal que trouxe um novo texto que entrou em vigor a partir desta Legislatura.

Art. 29-A. O total da despesa do Poder Legislativo Municipal, incluídos os subsídios dos Vereadores e os demais gastos com pessoal inativo e pensionistas, não poderá ultrapassar os seguintes percentuais, relativos ao somatório da receita tributária e das transferências previstas no § 5º do art. 153 e nos arts. 158 e 159 desta Constituição, efetivamente realizado no exercício anterior:   (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 109, de 2021)

Quando ocorre a devolução, o cálculo não é mais baseado no duodécimo previsto para todo aquele exercício financeiro, e sim, com base no que foi utilizado. Após a devolução, o percentual previsto no Art. 29-A, pode sofrer variação, ultrapassando os 70% do duodécimo para gastos com pessoal.

De acordo com a emenda constitucional nº 109 de 2021, os gastos com pensionistas e inativos, deverão ser de responsabilidade da Câmara Municipal, que a obrigação com esse gasto passou a vigorar a partir desta Legislatura.

A Responsabilidade do Gestor

A devolução de duodécimos, por si só, não é ilegal; o problema reside no excesso e na reincidência. Quando a sobra se torna a regra, ela se transforma em evidência de má gestão.

Presidentes de Câmaras Municipais devem, urgentemente, revisar seus processos de elaboração orçamentária. É fundamental que os orçamentos do Legislativo reflitam, de forma realista, as despesas necessárias, aprimorando o controle interno e evitando a superestimativa.

Ignorar o alerta dos órgãos de controle implica em assumir o risco de ter as contas julgadas irregulares, o que pode levar à aplicação de multas, à rejeição de contas e, em casos mais graves, à inelegibilidade do gestor. O dever do administrador público é zelar pela correta e eficiente aplicação dos recursos, em estrita observância à Lei de Responsabilidade Fiscal e aos princípios da Administração Pública. A hora de planejar é agora.


Autor:
Keivison Estephanelle
Advogado
Especialista em Consultoria para Câmaras Municipais


Referências Bibliográficas

CARVALHO FILHO, José dos Santos (Citado no Desenvolvimento)
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 20. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

MEIRELLES, Hely Lopes (Citado no Desenvolvimento)
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 39. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013.

MINISTÉRIO PÚBLICO DE CONTAS DO ESTADO DE SÃO PAULO (MPC-SP)
SÃO PAULO (Estado). MINISTÉRIO PÚBLICO DE CONTAS. Ato nº 17/2023-CP: Orientação Interpretativa nº 02.25. São Paulo, 2023. Acesso em: 12 nov. 2025.

MINISTÉRIO PÚBLICO DE CONTAS DO ESTADO DO PARANÁ (MPC-PR)
PARANÁ (Estado). MINISTÉRIO PÚBLICO DE CONTAS. Parecer nº 472/20 do Processo nº 708269/18. Curitiba, 2020. Acesso em: 12 nov. 2025.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 12 nov. 2025.

BRASIL. Lei nº 4.320, de 17 de março de 1964. Estatui Normas Gerais de Direito Financeiro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l4320.htm. Acesso em: 12 nov. 2025.BRASIL.

Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000. Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp101.htm. Acesso em: 12 nov. 2025.

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