INTRODUÇÃO
A arquitetura constitucional brasileira, erigida sobre o pilar da separação dos Poderes, não os concebeu como estamentos estanques e incomunicáveis. Ao contrário, instituiu um sofisticado sistema de freios e contrapesos, no qual cada Poder, ao lado de suas funções típicas, exerce atividades de controle sobre os demais. No âmbito da Administração Pública, a fiscalização dos atos do Poder Executivo pelo Poder Legislativo, com o auxílio dos Tribunais de Contas, representa a essência do controle externo.
Este artigo, debruça-se sobre uma de suas manifestações mais incisivas na esfera municipal: a competência da Câmara de Vereadores para sustar a execução de contratos administrativos firmados pela Prefeitura. Analisaremos os fundamentos constitucionais e legais dessa prerrogativa, as balizas doutrinárias que a conformam e o procedimento rigoroso para seu exercício, demonstrando que não se trata de uma faculdade discricionária, mas de um poder-dever vinculado à constatação de ilegalidade por órgão técnico.
1. O DESENHO CONSTITUCIONAL DO CONTROLE EXTERNO MUNICIPAL
A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial do Município é exercida pela Câmara Municipal, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder. É o que dispõe o artigo 31 da Constituição Federal de 1988. Para o exercício do controle externo, a Câmara conta com o auxílio do Tribunal de Contas do Estado ou, onde houver, do Tribunal de Contas do Município.
A matriz dessa sistemática encontra-se no artigo 71 da Constituição Federal, que detalha as competências do Tribunal de Contas da União perante o Congresso Nacional. Por força do princípio da simetria, consagrado no artigo 75 da Carta Magna, este modelo é replicado para os Estados e Municípios.
É no bojo do artigo 71 que encontramos a chave para a compreensão do poder de sustação. Diz o texto constitucional:
Art. 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete:
(…)
IX – assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada a ilegalidade;
X – sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal;
§ 1º No caso de contrato, o ato de sustação será adotado diretamente pelo Congresso Nacional, que solicitará, de imediato, ao Poder Executivo as medidas cabíveis.
A leitura atenta dos dispositivos revela uma repartição de competências e um procedimento escalonado. O Tribunal de Contas, ao identificar uma ilegalidade em um ato administrativo, pode sustá-lo diretamente. Contudo, a própria Constituição cria uma exceção de enorme relevância: tratando-se de contrato, a competência para a sustação desloca-se para o Poder Legislativo.
2. O PROCEDIMENTO DE SUSTAÇÃO E A NATUREZA VINCULADA DO ATO
A competência da Câmara Municipal para sustar um contrato não é originária nem discricionária. Ela é, na verdade, o último elo de uma corrente, acionado apenas após o cumprimento de etapas predefinidas.
Para ilustrar, utilizamos uma analogia médica: Imagine que o Poder Executivo (o cirurgião) está realizando um procedimento complexo (o contrato). O Tribunal de Contas (a equipe de monitoramento e auditoria) detecta uma grave anomalia que põe em risco a vida do paciente (o interesse público e o erário).
- Primeiro Passo: O Alerta Técnico. A equipe de monitoramento (Tribunal de Contas) não desliga os aparelhos por conta própria. Ela primeiro alerta o cirurgião, apontando a ilegalidade e determinando um prazo para a correção do procedimento (conforme Art. 71, IX, CF/88).
- Segundo Passo: A Inércia do Gestor. Se o cirurgião (Poder Executivo) ignora o alerta e insiste no procedimento falho, a equipe de monitoramento escala o problema.
- Terceiro Passo: A Deliberação Política. A equipe comunica a situação ao conselho de ética do hospital (a Câmara Municipal). É este conselho, e não a equipe de monitoramento, que detém a autoridade final para ordenar a suspensão da cirurgia.
- Quarto Passo: O Ato de Sustação. A Câmara Municipal, de posse do parecer técnico irrefutável do Tribunal de Contas e diante da inércia do Prefeito, delibera e, se for o caso, edita um Decreto Legislativo para sustar o contrato (conforme Art. 71, § 1º, CF/88). Ato contínuo, solicita ao Executivo que adote as medidas cabíveis para formalizar a paralisação e apurar responsabilidades.
De acordo com o pensamento de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “a atuação administrativa passa por um duplo crivo de fiscalização: um interno, exercido pela própria Administração sobre seus atos, e outro externo, conduzido pelos Poderes Legislativo e Judiciário”.
Nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello acompanha o entendimento que, “no Estado de Direito, a Administração Pública assujeita-se a múltiplos controles, no afã de impedir-se que desgarre de seus objetivos, que desatenda as balizas legais e ofenda interesse públicos ou dos particulares”.
Fica claro, portanto, que a Câmara não pode sustar um contrato por mera discordância política com o Prefeito ou por julgar o objeto do contrato inoportuno ou inconveniente. A atuação do Legislativo é vinculada à prévia constatação de ilegalidade pelo Tribunal de Contas e à omissão do Executivo em saná-la.
Para Luís Roberto Barroso, a interpretação do artigo 71, §§ 1º e 2º, da Constituição, deixa claro que o poder do Tribunal de Contas, ao decidir a respeito, limita-se ao julgamento técnico das contas. Essa autoridade, segundo ele, não se confunde com um poder de sobrepor sua avaliação à do administrador ou à do Legislativo, órgão ao qual o Tribunal serve de apoio.
“Decidirá, por certo, sobre a legalidade ou não do contrato, e da respectiva despesa, para o fim de julgamento das contas do administrador. Não é razoável supor, à vista da partilha constitucional de competência vigente no direito brasileiro, que o Tribunal de Contas possa, sobrepondo seu próprio juízo ao do administrador e ao do órgão ao qual presta auxílio, sustar aquilo que o Executivo e o Legislativo entendem ser válido. É preciso não esquecer: a fiscalização contábil, financeira, orçamentária e patrimonial é exercida, mediante controle externo, pelo Congresso Nacional, com o ‘auxílio do Tribunal de Contas’. Por evidente, a última palavra é do Órgão Legislativo, e não do Tribunal de Contas. E, em qualquer caso, ainda existirá o recurso ao Judiciário.”
A sustação, portanto, não anula o contrato. A anulação, por vício de legalidade, é ato que compete, em regra, à própria Administração (autotutela) ou ao Poder Judiciário. O ato da Câmara Municipal tem o efeito de paralisar a execução do contrato, suspendendo sua eficácia e impedindo que a ilegalidade continue a produzir efeitos e a consumir recursos públicos, enquanto se aguarda uma solução definitiva.
Não se pode confundir que o ato da Câmara Municipal, seguindo a simetria à Constituição Federal de 1988, é de apenas sustar contratos administrativos, não podendo sustar as licitações tanto na fase inicial, meio e fim. O Supremo Tribunal Federal já decidiu sobre a situação de criar Poderes ao Legislativo que violam a Constituição Federal, na ADI 3715 / TO – TOCANTINS:
Ação Direta de Inconstitucionalidade. 2. Constituição do Estado do Tocantins. Emenda Constitucional n° 16/2006, que criou a possibilidade de recurso, dotado de efeito suspensivo, para o Plenário da Assembleia Legislativa, das decisões tomadas pelo Tribunal de Contas do Estado com base em sua competência de julgamento de contas ( §5º do art. 33) e atribuiu à Assembleia Legislativa a competência para sustar não apenas os contratos, mas também as licitações e eventuais casos de dispensa e inexigibilidade de licitação (art. 19, inciso XXVIII, e art. 33, inciso IX e § 1º). 3. A Constituição Federal é clara ao determinar, em seu art. 75, que as normas constitucionais que conformam o modelo federal de organização do Tribunal de Contas da União são de observância compulsória pelas Constituições dos Estados-membros. Precedentes. 4. No âmbito das competências institucionais do Tribunal de Contas, o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a clara distinção entre: 1) a competência para apreciar e emitir parecer prévio sobre as contas prestadas anualmente pelo Chefe do Poder Executivo, especificada no art. 71, inciso I, CF/88; 2) e a competência para julgar as contas dos demais administradores e responsáveis, definida no art. 71, inciso II, CF/88. Precedentes. 5. Na segunda hipótese, o exercício da competência de julgamento pelo Tribunal de Contas não fica subordinado ao crivo posterior do Poder Legislativo. Precedentes. 6. A Constituição Federal dispõe que apenas no caso de contratos o ato de sustação será adotado diretamente pelo Congresso Nacional (art. 71, § 1º, CF/88). 7. Ação julgada procedente.
CONCLUSÃO
O poder da Câmara Municipal de sustar contratos administrativos é uma ferramenta vital para a saúde da democracia e da gestão pública municipal. Longe de ser um cheque em branco para a interferência política na administração, trata-se de uma prerrogativa excepcional, de exercício vinculado e que depende de provocação qualificada do Tribunal de Contas.
A atuação do Vereador no processo de sustação de um contrato administrativo é o ápice de sua função fiscalizadora e a mais pura manifestação da democracia em âmbito local. Como representante direto do povo, ele é a voz e os olhos da cidadania dentro da máquina pública. A Constituição Federal, ao desenhar o sistema de freios e contrapesos, não lhe conferiu um poder arbitrário, mas sim o poder-dever de agir quando o interesse coletivo está em risco.
Seu voto pela sustação não é um ato de oposição política, mas um gesto de lealdade ao seu mandato e à população que o elegeu. É nesse momento que a representatividade se materializa em ação concreta, garantindo que a vontade do povo e o primado da lei prevaleçam sobre a ilegalidade e o eventual desvio de finalidade na gestão administrativa. A omissão, nesse caso, seria uma traição à confiança popular.
A correta compreensão de seu procedimento escalonado e de sua natureza reativa é fundamental para evitar abusos e para garantir que o mecanismo cumpra sua finalidade precípua: servir como um freio de emergência, acionado pela casa do povo, para salvaguardar o erário e o primado da legalidade quando os controles primários se mostrarem insuficientes. Em última análise, é a manifestação concreta do controle popular sobre a gestão da coisa pública, pilar de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 919.
- BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal.
- DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 34. ed. São Paulo: Forense, 2021. p. 896.
- Supremo Tribunal Federal, ADI 3715 / TO – TOCANTINS. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. Relator(a): Min. GILMAR MENDES. Julgamento: 21/08/2014. Publicação: 30/10/2014. Órgão julgador: Tribunal Pleno
Autoria:
Equipe técnica da Valeriote Advogados
Keivison Estephanelle
Advogado
Assessor Parlamentar
Pós-graduando em Direito Administrativo
Pós-graduando em Processo Legislativo
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